Histórias Misturadas pretende trazer um pouco de tudo. Terá , obviamente, histórias de gente que existiu, existe, ou não. Misturam-se, com elas, casas, ruas, receitas, livros, poemas, pensamentos, experiências, tradições, dúvidas, lembranças. É um saco de muitos gatos de diferentes pelos e tamanhos. Quem sabe, até, nesse liquidificador, adicionaremos ingredientes em inglês e Francês…
O real poderá esconder-se na ficção, e vice-versa. Verdades e mentiras nas entrelinhas. Justifica-se, portanto, o nome do blog que quer ser aquele armazém de secos e molhados dos velhos tempos.
Vovô despediu-se dos familiares e amigos que moravam em sua aldeia, lá em cima. Fora atendido nesse pedido em razão de sua fé e das orações que fizera, ao longo de quase noventa anos. Seria visita breve : havia muitas tarefas a esperá-lo. Antes de descer, pegou um lápis de marceneiro—José deixara-lhe muitos—e anotou , em sua cadernetinha—Pedro dera-lhe uma—os pedidos da turma.
Sua esposa ansiava que olhasse as netas, já adultas, e bisnetas que deixara ainda pequenas; notícias do filho (mesmo que esse nunca parecera amá-la). Titia, sua cunhada, desejava saber das meninas, de sua casa com gerânios e pés de malva. Queria que passasse pelo que fora a antiga fábrica de botões de seu marido. Ah, que lembrasse de ver como iam suas streletiae (“meus pássaros do Paraíso”) de seu jardim.
Vovô Antonio, seu sogro, interessava-se pelas bisnetas com as quais convivera por alguns anos: uma lhes fora entregue aos três meses de idade e a outra tivera difteria. A outra menininha, que, bem pequenininha, fora entregue à avó materna, estava muito bem: divertia-se com eles, entre as campinas, e dava aulas de canto para as criancinhas que chegavam lá cedo demais.
E, enquanto Oma não olhava para as nuvens de algodão, Bisa Antonio cochichou para que Vovô desse uma passada pela turma da comilança e pescarias, na Beira do Rio.
Oma, sua sogra, alertou-o sobre bisnetas, sobretudo a segunda, aquela que, com sua dedicação, salvara da difteria. Eram quatro, ao embarcar na ventania de uma crise aguda de angina, logo depois de acompanhar, pelo seu Ralfo[1], à cabeceira da cama, as desventuras de Albertinho Limonta, Mamãe Dolores e Isabel Cristina em mais um capítulo de “O Direito de Nascer”. Queria saber dos vizinhos da Lindolfo, como o Herr Ercílio, sempre incomodado por alergias. Ansiava notícias da Großße Straße [2], com suas casas bonitas e a calçada com os mesmos desenhos de Copacabana, sem falar na alameda de árvores que a ladeavam desde a pracinha do rio até a esquina de sua casa.
Vovô temia descer , lá do alto, e encontrar tudo destroçado. Como estaria a Fábrica? E…de que modo a vida tratara as meninas e as crianças? Levava o caderno e o lápis para registrar tudo, pelo menos o mais importante, que acontecia, agora, e o que ocorrera desde aquele dia, na cama distante—não a sua—na qual o largaram. Aliás, será que o Senhor havia sido justo com o casal que o abandonara?
Titia falava difícil e lia muito. Havia pilhas de Eu Sei Tudo, Vamos Ler, A Carioca e sua coleção de Correio do Povo. Ah, e a Enciclopédia Jackson, de capa verde, que, volta e meia, folheava para poder discutir, plena de razão, com Vovó e Vovô, na hora do almoço de domingo. Lera tudo, mas gostava de guardá-los para folheá-los, à noite, depois do Repórter Esso.
Certa feita, ao chegarmos à cozinha, sentimos cheiro de papel queimado e deparamos com Titia ainda a alimentar o fogo com algumas folhas de revista na mão. Falou, em resposta a nossos porquês, que tivera motivo: “Muitas lágrimas derramei sobre aquelas revistas. Minha cunhada devolveu-as, num pacote atado com barbante, logo depois que seu marido se foi. Emprestara-as, quando ele foi para o Isolamento. Ficara lá, bem sozinho, só com enfermeiros , freiras e com os outros doentes. A peste branca, como denominavam a tísica, é muito triste. Aparece devagarzinho, sem que a gente reconheça seus sintomas. Os enfermos definham a olhos vistos. Metade deles morre, apesar de submeterem-se a tratamentos doloridos, como a infiltração de ar para dentro dos pulmões, na esperança de curar feridas e fechar as cavernas em seus pulmões.”
“Como é que colocam ar para dentro das costelas? É tipo a bombinha de ar para encher pneus de bicicleta?” perguntávamos intrigadas com o que faziam os médicos para encher de vento o corpo dos doentes.
“No Isolamento do Centenário, há uma sala com macas para os infectados deitarem-se de costas e receber infiltração de ar através de uma seringa grande com uma agulha especial. Meu cunhado fez várias, mas não adiantou. Usaram sais de ouro, ventosas, purgantes, sangrias, óleo de fígado de bacalhau, creosoto e quinino antes de ele acabar no sanatório. Fez até operação pelo espaço, num Centro Espírita. Um médico, em Cacequi, tirou-lhe duas costelas para facilitar as infiltrações. Parecia um fantasma, no fundo da cama,com revistas espalhadas e respingado de sangue.”
Sabíamos que a história era triste sobretudo porque era de verdade, e, ainda por cima, de alguém que nos parecia meio parente. Titia já contara esse drama outras vezes, tantas que a palavra “ isolamento” exercia um fascínio sobre nós e criava imagens fortes e vermelhas em nossas mentes. Sim, porque, na primeira vez que a ouvimos, ela explicou tudo, tintim por tintim.
Não queríamos escutar nada disso à noite, apesar de, antes de dormirmos, de um travesseiro para outro, na cama de casal que repartíamos com muitas brigas, iniciávamos o assunto, maldosamente, com o intuito de uma assustar a outra.
E os sonhos misturavam Margueritte, trágica heroína do romance de Dumas, A Dama das Camélias, com suas flores brancas e infinitas dívidas , lívida em sua alcova, com os corredores vazios do sanatório , cheios da sinfonia da tosse daquele tio distante, que abafava e abanava suas crises com as folhas marrons da revista Carioca.
Certas dessas narrativas marcavam conversas enquanto nos preparávamos para dormir. Uma era a dos gregos, ou romanos, que, para verificar se a morte aproximava-se , cada vez mais, de um doente, pediam que esse escarrasse em um pote com água do mar. Se o sangue descesse ao fundo do pote, o infeliz poderia ir preparando sua despedida do mundo: logo a Foice iria buscá-lo para o desconhecido.
Coitados, pensávamos, ficar esperando para saber o que aconteceria com sua cusparada grossa de sangue era pior do que ficar sem saber o que ainda havia pela frente. Entretanto essa era ainda leve, se comparada à do lume aceso: o fraquinho lançava seu escarro sobre as brasas vivas e, se saísse fumaça sem cheiro, ele, em breve, estaria curado; se subisse do lume um cheiro desagradável, podia, certamente, encomendar sua mortalha.
“É verdade, li no Eu Sei Tudo. Mas acho que isso ainda pode ocorrer lá nos confins da terra. Nem precisam se preocupar, meninas. Não usam mais tais diagnósticos. Vocês são muito influenciáveis: qualquer potoca põe vocês com medo. Ninguém deve temer a verdade. Há muita coisa terrível no mundo que vocês precisam aprender. Talvez, mais tarde, esses conhecimentos possam ser úteis para a vida”, argumentava Titia.
Quando acompanhávamos Vovó em seu tratamento dos ouvidos, com o que parecia um travesseirinho elétrico, para sua inflamação, íamos até bem perto da entrada interna do pavilhão dos tuberculosos. Ficávamos sentadas , imóveis, observando a movimentação de médicos, enfermeiras e freiras. Às vezes, víamos alguém, magro e pálido, de roupão e amparado por uma freirinha, sendo levado a tomar sol na área da frente do isolamento. Tais visões nossa imaginação, acelerada pelas histórias de Titia, transformava em enredos dramáticos, nos quais a mocinha contaminada por seu noivo, condenado à morte próxima porque seu cuspe exalara odores insuportáveis ao queimar sobre brasas, ficaria enfurnada no poço da saudade, atirada no catre do sanatório à espera do fim.
Víamos, em noites de vento e trovões, o pavilhão encher-se de fantasmas que tossiam sangue e deliravam sem parar. Eram os antigos doentes que retornavam para ver se ainda encontravam algum companheiro de tosse e pneumotórax pelas enfermarias cheirando a creolina.
“Queimei tudo, até os barbantes” continuava Titia, referindo-se às revistas. “Elas passavam de mão em mão entre os pacientes. Não foi pelo medo de contágio, mas pelas amarguras armazenadas nas fibras de cada pedacinho dos retratos dos artistas, tão livres e sorridentes, em festas e filmes. Queimei as lembranças dos olhares lacrimosos de dias e noites longas presos naqueles retratos.”
Nós perdemos, dessa forma, a coleção da Revista Carioca. Sobraram-nos, muitos exemnplares do Jornal das Moças, Vamos Ler e Eu Sei Tudo. Em dias cinzentos, voltamos a eles e , aí , assustam-nos aqueles fantasmas dos leitores da Carioca e o azul espantado dos olhos de Titia.